quinta-feira, 20 de julho de 2017

Cultura X capital


Uma das coisas que mais tem me chamado atenção tanto na minha pesquisa quanto na militância da cultura é o foco que a maioria dos trabalhadores da cultura tem em pensar apenas questões da linguagem artística em que atuam.
E não sou apenas eu que percebi isso.
Tem alguns artigos (muito sensatos por sinal) falando desta questão há algum tempo. E o quanto esse tipo de postura atrapalha a construção de novos modelo de gestão mais democráticos e financiamento à cultura de um modo mais amplo.
O foco do engajamento em relação a questão de linguagens específicas fica ainda mais claro quando pensamos que em raras vezes vemos o engajamento em relação a questões mais amplas, como modelos de gestão e financiamento e a questão da descentralização das verbas.
A única exceção talvez seja nos momentos das lutas por verbas e orçamento, porém, mesmo nessas situações, a disputa ocorre em termos de linguagens e não de lutar por um orçamento de modo geral. As militâncias das linguagens acabam se degladiando entre si ao invés de compreender que o ideal mesmo seria a mudança nos modelos de financiamento e a disputa por uma ampliação do orçamento como um todo.
Isso é bem curioso e perigoso.
Fica bem claro pra mim (e isso traz uma apontamento muito forte para minha pesquisa) de que as mudanças estruturais nos modelos de financiamento à cultura não ocorreram nos últimos anos não apenas pela falta de interesse do legislativo e do executivo mas também por falta de interesse real dos trabalhadores da cultura em alterar a logica do capital nas políticas públicas de cultura. Nesse caso, para essas pessoas, o importante é garantir a verba daquele edital "que eu sempre ganho", e não pensar que deveria ser mais importante pensar em mecanismos mais gerais que garantam uma distribuição das verbas mais democrática.
Esse interesse pelo engajamento de questões mais amplas acontece curiosamente na militância acadêmica. É bem comum as sessões de comunicação sobre financiamento terem bastante quorum.
Isso me lembra também de que outro indício que percebi na militância é que há pouco interesse em conhecer tecnicamente e profundamente a gestão pública de cultura de forma mais ampla. Poucos militantes da cultura se preocupam em entender profundamente o funcionamento do Sistema Nacional de Cultura por exemplo. Entretanto é bem comum ouvir destas mesmas pessoas críticas a ele que não procedem. (eu mesma tenho muitas críticas ao SNC, mas são bem diferentes das críticas que tenho escutado por ai).
Já pensei inclusive em fazer um teste para analisar isso.
Quando eu proponho um curso para ensinar a escrever projetos culturais, ou para uma lei de incentivo ou edital específico , lota. As inscrições acabam em poucos dias. Se eu oferecer um curso sobre modelos de gestão pública da cultura, focando no aprofundamento no SNC e PNC aposto que vai aparecer meia dúzia de pessoas. Já tentei oferecer esse tipo de curso em espaços e sempre escutava "esse tipo de curso não tem procura".
Ao fazer uma análise técnica sobre o desmonte, o que realmente está pegando de forma mais geral é questão da mudança de lógica no sistema de financiamento. Estamos voltando aos tempos do modelo puramente neoliberal. O modelo de balcão está vindo com tanta força que está tomando conta inclusive dos editais.
Isso se deve não apenas pelos governos neoliberais que estão ai, mas também pelo não fortalecimento na tentativa de mudanças do modelo de financiamento ao longo desses anos...
Lembro quando fizemos os encontros para falar da Procultura ano passado. Era muito dificil mobilizar interessados. A maioria das pessoas da cultura não tinham a mínima ideia do que se tratava e o quanto o Procultura era importante para a alteração estrutural na lógica do financiamento. Porém em alguns desses encontros algumas pessoas, com longa trajetória na militância, apareciam para revindicar pontos no projeto de lei da Procultura que deveria estabelecer beneficios à linguagens. Lembro inclusive de algumas reuniões em que deu até briga por isso.
Esse é um tema denso porém super necessário de se discutir e pensar. Não adianta tentar construir uma base de militância da cultura enquanto tem gente no meio defendendo um edital de fomento X ou a seleção de projetos por conta de sua "excelência artística". Por isso inclusive que a unidade no movimento da cultura é praticamente impossível.
Até quando a militância da cultura vai se enganar com esses discursos falsos de luta que na verdade demonstram um engajamento de caráter burguês pela manutenção de privilégios e vai encarar o macro e a mudança de lógica no financiamento visando a democracia na distribuição de verbas?